O Eu e o Outro – por Carlos Augusto Soares
- wilsongmoura
- 9 de jul. de 2024
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O senso comum nos ensina que todos nós queremos o próprio bem, e sempre o bem, jamais desejando o fracasso, a doença, a desdita, a não ser que não estejamos no controle da nossa razão. Acreditamos que fazemos ou buscamos fazer sempre apenas coisas razoáveis e que tudo fazemos para a nossa autoconservação e felicidade, afinal. Mas uma observação mais atenta nos mostra que não é bem assim, que muitas vezes o bem que queremos é o mal que fazemos.
Desde o cogito de Descartes, a razão ocupou lugar central como princípio que rege as ações da humanidade, destronando Deus e se tornando a nova transcendência que guiaria a humanidade no seu modo de pensar e de agir, no funcionamento das instituições, de modo que o homem passaria a ser o produto de si mesmo, um produto conscientemente forjado entre escolhas acertadas e coerentes com seus ideais, estes também harmoniosamente erigidos, afinal, a razão não falha. O Eu seria a sede das ações coerentes e perfeitas, uma unidade, uma entidade isenta de contradições. O ideal moderno, entretanto, não resistiu à crítica profunda protagonizada sobretudo por Nietsche e Freud. Este último afirmou textualmente que o Eu não é senhor em sua própria casa, o que quer dizer que boa parte do que fazemos é determinado inconscientemente e não resultado de ações conscientes.
Muitas vezes, parece que é outra pessoa que age por nós, por trás das cortinas, roubando a cena. E, podemos dizer, é mesmo. Porque o Eu é cindido. O Eu não é uma unidade. A primeira grande ilusão que o Eu abriga é a ilusão de unidade. O Eu é cindido. É onde não é. Pensa onde não pensa. Quer o que não quer, ou pelo menos o que não deseja. O Eu e o outro habita o mesmo corpo, se bem que não é de corpo que se fala, senão enquanto corpo pulsional. O Eu abriga e exerce quereres contraditórios, incompossíveis, e, não raras vezes, faz prevalecer aquele que se revela o mais estranho.
Pensando assim, é mais fácil entender os mecanismos de autossabotagens, que fazem o sujeito tomar o ônibus errado quando vai para a entrevista de emprego, esquecer-se de pagar o boleto cujos juros custam o olho da cara, justamente o valor que iria bancar aquele fim de semana esperado, o “dedo podre para a escolha do par amoroso”, e por aí vai. Não, nem tudo o que fazemos é fruto de um pensar e de um agir conscientes.
Freud concebeu um modelo explicativo do funcionamento do aparelho psíquico, estabelecendo, assim, em 1900, a denominada primeira tópica, segundo a qual o aparelho psíquico seria organizado como uma sucessão de compartimentos: Inconsciente, Pré-consciente e Consciente. A partir desse momento, o Inconsciente deixa de ser apenas adjetivo. Agora é substantivo, é um lugar. Lá vão parar todos os conteúdos rejeitados pelo Consciente, ou aqueles que, de tão intoleráveis, sequer fizeram escala no Consciente. Recalque secundário e recalque primário.
Segundo a teoria desse formidável desbravador, parte desse material recalcado de alguma forma ergue-se do Inconsciente e chega a ser admitido ao Pré-consciente, que seria como uma ante sala do consciente e a este pode ser admitido. O trabalho da análise busca esse desiderato, embora consista em muito mais que isso. Mas é parte fundamental da análise freudiana tornar consciente o que é inconsciente.
É importante considerar que o recalcado sempre volta, vindo à tona nem sempre por ter-se tornado consciente, mas vem inconscientemente mesmo, com todo o assombro que possa causar. Os conteúdos inconscientes, o recalcado, consiste em desejos que contrariam fortemente preceitos morais em que a sociedade foi forjada, tradições familiares ou de um povo, tradições religiosas, e que, justamente por essa desconformidade, são tidos por intoleráveis, mas continuam a existir. São desejos arraigados, jogados para a escuridão do esquecimento, tornados inconscientes. Mas ninguém se liberta do retorno do recalcado. Ele sempre volta, e é aí que as fissuras do Eu se revelam, porque ele próprio é, em parte, inconsciente.
Mais tarde Freud concebeu a sua segunda tópica, que consiste de Eu, Isso e Supereu. O Isso, ou Id, é a parte do Eu que se diferencia e se torna inconsciente no momento mesmo de sua constituição. Não entraremos na discussão de como o Eu se constitui. Será tema para outro momento. O Isso, ou Id, é a sede dos desejos e ao longo da vida, projeta esses desejos na direção do Eu, em busca de realização. Ocorre que, acima, existe uma instância que também exerce pressão sobre o Eu, exigindo renúncia à satisfação de tais desejos, o Supereu.
Dissemos acima que muitos conteúdos, e aqui podemos chamar de desejos, mas não apenas desejos, ao chegarem à sede do Eu, entram em choque com preceitos morais pregados e defendidos pela família, pela comunidade, com tradições religiosas, dentre outras e, nesse confronto, parecem insuportáveis para o Eu, e, em razão disso, passam pelo processo de recalque. O Supereu é essa instância repressora que obriga o Eu a empurrar esses conteúdos para debaixo do tapete, mas, ficar debaixo do tapete não quer dizer que tais conteúdos tenham sido removidos. Cada tropeção no tapete levanta a poeira do recalcado, que se faz manifestar ali nas mancadas do Eu, exatamente onde dele se esperava outra coisa.
É por isso que muitas ações do Eu parecem coisa de louco, que não fazem sentido, por estarem na contramão de qualquer atitude racional, porque nada têm mesmo de racionais, porque são nada menos que a manifestação do recalcado que retorna quando o Eu tropeça no tapete. É nas mancadas que esses conteúdos recalcados se manifestam, e também nos sonhos.
Os esquecimentos, na maioria das vezes, não são inocentes. Eles podem ter consequências severas e, portanto, é de se esperar que estejamos prevenidos para não esquecer o que é importante. E, no entanto, esquecemos o que é mais importante e arcamos com as consequências. Quanto custa esquecer o passaporte no momento de partir para a defesa daquela tese de doutorado, por exemplo? Não só o que se esquece, mas também o que se diz tem consequência. Os atos falhos vivem colocando as pessoas em dificuldades. Trocar o nome de alguém, no momento errado, pode causar uma confusão incontornável.
Por fim, os sonhos, esse arcabouço de conteúdos reveladores e tão contraditórios. Sonhos são realização de desejos, mas de desejos inconscientes, é o que Freud diz em A Interpretação dos Sonhos. Pode ser assustador sonharmos que matamos entes queridos, ou com cenas de sedução com pessoas com quem jamais admitiríamos no estado acordado, ou praticando atos brutais tão contrários a nossa índole, mas todo mundo já sonhou algo assim. Os desejos contidos nos sonhos manifestam o recalcado, que retorna em forma de linguagem do sonho, sobre a qual o Eu não tem qualquer controle.
Claro que depois ele vai dizer que há outras funções nos sonhos, mas, primacialmente, eles falam de desejos inconfessáveis no plano da consciência, mas isso fica para outro escrito. O que importa dizer é que, dito tudo isso, fica claro que o Eu existe, mesmo, ali onde não está, pensa onde não pensa.







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